O presente
artigo tem como foco abordar a Língua Portuguesa enquanto elemento da
identidade cultural do povo timorense. O tema que se trata aqui já foi debatido
logo nos primeiros anos da independência de Timor-Leste, o qual surgiu com algumas
perspetivas antagónicas que se consideram como desafios quanto à afirmação da
língua de Camões como um dos elementos da identidade nacional e cultural do
povo timorense. Começo, portanto, por citar algumas dessas perspetivas que
foram apresentadas pelo linguista
australiano, Geoffrey Hull, num Congresso Nacional realizado em Díli, afirmando
ele o seguinte:
“Todos os
timorenses estavam unidos em relação à fundação do novo estado; divergiam, no
entanto, quanto à questão da língua e da cultura. Neste momento, existem duas
perspetivas antagónicas sobre a identidade cultural de Timor-Leste, e entre
estas existe todo um leque de correntes e pontos de vista. Por um lado, os
elementos da velha geração querem que o português seja a única língua oficial,
e não prevêem qualquer tipo de estatuto oficial para o tétum ou para os outros
vernáculos. No extremo oposto, estão os jovens que querem que apenas e só o
tétum seja a língua oficial, manifestando-se deveras apreensivos em relação ao
português.” – (Extraído
da publicação TIMOR-LESTE: Identidade, Língua e Política Educacional – Texto
original em tétum elaborado pelo Prof. Dr. Geoffrey Hull, Universidade de
Western Sydney (Austrália), e pelo Prof. Dr. Benjamim de Araújo e Corte-Real,
da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (Timor-Leste). – Tradução para o
português, Maria da Graça D’Orey).
Partindo da
premissa destes desafios, tentarei apresentar as minhas perspetivas quanto à afirmação
da identidade cultural e nacional do povo timorense para a qual o português constitui,
sem dúvida, um elemento fulcral. E a base teórica que fundamenta a opinião do
presente artigo assenta na perspetiva de Geoffrey Hull, linguista australiano
que se dedica ao estudo das línguas em Timor.
Assim, e com base no antagonismo
supracitado, permitam-me viajar ainda um pouco para trás e refletir alguns
cenários decorridos nos primeiros anos do nosso curso de licenciatura em ensino
da língua portuguesa, no Liceu Dr. Francisco Machado, UNTL. Já no fim do ano de
2018 tive conversas com os meus amigos, jovens do mesmo curso, defensores e
potenciadores para presente e futuro da língua portuguesa em Timor-Leste, e lembrámo-nos perfeitamente que, entre os anos
de 2005 e 2008, havia algumas discussões
e opiniões divergentes entre alguns estudantes do Departamento de Língua
Inglesa e do Departamento de Língua Portuguesa relativamente à questão do
português como língua oficial e língua de identidade nacional e cultural. O
ambiente não era assim tão amigável ao longo desses anos, havendo então falas e
discussões provocativas nos corredores, sobretudo por parte de alguns jovens do
Departamento de Inglês. Sabemos, pois, que foi no período em que ainda havia
presença da UNTAET que o mercado de trabalho em língua inglesa era muito
procurado. Então, o grupo que dominava mais o inglês não queria que o português
se difundisse e competisse no mercado de trabalho. É o que consideramos como tentativas
para impedir o futuro da língua portuguesa em Timor-Leste.
Mesmo assim, importa dizer que
a sociedade está sempre em constante mutação. Por isso, a maneira de pensar e
de agir depende também das circunstâncias em que se encontra e do tempo em que
se vive, pois neste momento estamos já num contexto diferente em termos de
“contra” e “a favor” da língua portuguesa. Conheço muitos jovens que na altura
não gostaram do português mas agora estão fazendo esforços para aprendê-lo,
pois o português é, sem dúvida, o veículo principal na elaboração e transmissão
de conhecimentos.
O que eu quero dizer com tudo
isto é, para afirmar que a língua portuguesa é um elemento principal da nossa
identidade nacional e cultural, em primeiro e no fundo, temos de reconhecer e
aceitar que essa língua é nossa, e não é uma língua estrangeira.
O professor associado da
Universidade de São Paulo, Brasil, e pesquisador da história do idioma
português, Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, afirma que “A língua é o
principal elemento da identidade cultural de um povo”. Pois, através da
língua ou da linguagem é que se vê e se conhece o mundo. Então, o tema
propriamente dito trata-se de como as pessoas nos identificam culturalmente por
meio da língua ou das línguagens, marcas e heranças portuguesas implantadas nas
nossas veias e no nosso quotidiano.
O português é uma semente já
cultivada neste pedaço da ilha há muitos anos e que, através do seu poder e
prestígio, faz crescer o tétum e outros vernáculos do país.
E como é que essa língua pode
evoluir em Timor-Leste, no presente e no futuro? Neste sentido, Hull (sd. pg.
36) salienta que “como resultado da campanha de difusão da língua portuguesa durante a
segunda metade do século XIX, o tétum e os outros vernáculos ficaram
impregnados de expressões, vocábulos e estruturas sintáticas portuguesas”.
A abordagem sociolinguística
não separa a tríplice língua, identidade e cultura. É um tema de abordagem
muito ampla. O povo de um determinado país vive com a sua língua, cultura,
crença, e outros valores prticados no seu dia a dia.
Do que falamos então quando
mencionamos que a cultura do povo timorense é caracterizada pela língua
portuguesa?
No ponto de vista
antropológico-sociológico, a cultura é o conjunto de atitudes e padrões de
comportamentos, linguagens, conhecimentos e saberes adquiridos, costumes,
informações etc. que distinguem um indivíduo, um grupo social e um povo numa
perspetiva evolutiva. Neste sentido, ao longo de muitos anos, a língua portuguesa
tem vindo a assumir um papel crucial na civilização moderna do povo timorense e
na evolução cultural.
No fundo, a questão da cultura
possui um sentido mais amplo e abrangente. Por isso, é necessário decifrar e
explorar esse conceito que pode nortear a nossa abordagem quanto à identidade
cultural. Destacamos assim a cultura na dimensão política e administrativa, a
cultura jurídica, cultura na dimensão de identificação pessoal, culinária,
indumentária, música, etc.
Quanto à identidade, falamos
das “características e circunstâncias que distinguem uma pessoa ou uma coisa e
graças às quais é possível individualizá-la”, (In Dicionário Houaiss
da Língua Portuguesa, Instituto António Houaiss de Lexicografia Portugal, Tomo
II, pg. 2029). Ou melhor dizer, como é que se identifica uma pessoa
pelo seu nome, pela sua maneira de ser, de vestir, de falar (sotaque), de
comer, etc. É a partir destas características que somos identificados
internamente e externamente.
Sincronizando esses conceitos
teóricos, a minha perspetiva central quanto à afirmação da identidade cultural
do povo timorense assenta em dois processos fundamentais que a língua
portuguesa pode caracterizar, nomeadamente, o processo de identificação interna
(dentro do país) e o processo de identificação externa (fora do país – na
região do sudeste asiático, e noutras regiões do mundo). Neste sentido, o papel de todos os cidadãos em
difundir a língua portuguesa é extremamente importante.
Relativamente ao processo de
identificação interna, podemos atentar nos seguintes elementos, nomeadamente, os nomes próprios de origem portuguesa
sobretudo os apelidos que diferem, de uma maneira geral, a naturalidade do
indivíduo, como por exemplo, Araújo e Corte-Real é de Ainaro; Babo é de Ermera;
Gusmão, Sousa e Bonaparte são de Manatuto/Laleia/Vemasse e Baucau; Ximenes
também é de Baucau; Sarmento é de Soibada; Lobato e Nunes são de Liquiçá e
Soibada; Oliveira, Soares, Moniz e Osório são de Laclúbar; Lobato é de
Liquiça/Bazartete e Soibada; Guterres é de Viqueque, Carceres é de Lacló,
Xavier é de Aileu e Turiscai, etc.
Quanto aos nomes próprios, por
um lado e sem dúvida, a maioria dos timorenses tem o nome de origem portuguesa
mas, por outro, podemos constatar que a Igreja Católica já não é exigente como
era. O meu pai é catequista e lembro-me que dantes, quando havia um programa de
baptismo, ele e os padres não aceitavam qualquer nome de origem indonésia ou
qualquer abreviatura a não ser o de origem portuguesa, sobretudo os nomes dos
santos.
Um malae português ou brasileiro, quando for aos mercados de Díli ou
mesmo no interior do país ou passeando pelas ruas de Díli, pode ficar
surpreendido com a quantidade de produtos com o nome em português, desde logo
frutos (tangerinhas, ananas, abacate, maçã, etc.); legumes (mostarda, alface, repolho,
tomate, cenoura, etc.), e outras especiarias.
Já no processo de identificação
externa, temos certas características que diferem principalmente a nossa
existência na região da Ásia e do Pacífico, bem como em outras regiões do mundo.
Essas características são civilizadas e modernizadas pela língua portuguesa. Destacamos:
Músicas e danças folclóricas e poesias (Hino Nacional Pátria, Pátria, etc.),
arquiteturas, ação cívica de intelectuais e figuras públicas, etc.
Por outro lado, nós nunca
podemos esquecer o papel dos média (jornalistas) e dos escritores na produção e
divulgação da nossa cultura e literatura. Num estudo feito por Vicente Paulino,
sobre os média e a afirmação da
identidade cultural timorense (2014. pg. 2) diz o seguinte: “É justo
que se diga que, de entre os jornais publicados em Timor, a Seara foi, de todos, o que mais contribuiu
para a correcta representação da cultura e identidade do povo timorense. De
facto, este periódico teve um especial papel na divulgação das “ideias,
crenças, tradições, lendas que nos permitem ver a alma destes povos tão simples
e tão complexa, tão diferente da nossa, mas, em última análise, a braços com as
mesmas eternas aspirações humanas, em presença das mesmas interrogações
perturbadoras, em luta com os mesmos imponderáveis inimigos” (Jornal da SEARA,
Ano 1-nº.1, 1949:11)”, o que diz Benedick Anderson. E por outro lado, o mesmo estudo diz ainda o seguinte: “Poder-se-á dizer também que a construção da
identidade nacional do povo timorense resultou do esforço conjugado do papel
“reconstrutor” dos media, da acção cívica de
intelectuais e figuras públicas e, sobretudo, dos movimentos sociais.” (PAULINO,
id ibidem. pg. 2).
Para além dos média, importa
referir ainda o papel crucial dos escritores, nacionais e internacionais, que,
através das suas obras literárias, divulguem a nossa identidade cultural pelo
mundo. Uma análise feita por José Luís Giovanoni Fornos (sd. pg. 6), à obra de
Luís Cardoso, O Ano em que Pigafetta
Completou a Circum-navegação, diz o seguinte: “O presente
ensaio examina o romance O ano em que Pigafetta completou a
circum-navegação (2012), levando em consideração aspectos históricos
e de identidade, assinalados a partir do Oriente asiático. A trama composta
pelo escritor timorense Luís Cardoso reflete sobre tais elementos, apoiando-se
na representação de um grupo de personagens que reproduz a dinâmica política e
cultural do Timor Leste, ex-colônia portuguesa.”
A questão do presente e futuro
da língua portuguesa em Timor-Leste está nas nossas mãos – nós os jovens e as
crianças – e estou certo de que, com o trabalho duro que temos feito, e que continuaremos
a fazer, e o devido apoio e investimento do nosso Estado aos jovens
potenciadores e crianças em todo o país, o futuro da Língua Portuguesa será mais
consolidado, difundido, evoluído e que trará mais a luz do conhecimento e
sabedoria. Muito obrigado!
Por: Francisco de Araújo
NB: Este artigo já foi apresentado numa redonda, cujo tema, o
português enquanto elemento da identidade cultural, no dia 18 de outubro de 2018. É uma conferência das III
Jornadas Pedagógicas organizadas por um grupo de estudantes do Departamento de
Língua Portuguesa da FEAH/UNTL, com a colaboração do Centro de Língua
Portuguesa.
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